sábado, 15 de maio de 2010

Cinema, cigarros e chá de hortelã

Me irrita ser obrigada a enfrentar as centenas de frequentadores do shopping center sempre que preciso ir ao cinema. Sim, filmes são parte da minha terapia. Preciso deles, assim como dos cigarros, para continuar existindo.

Sempre chego muito adiantada para as sessões. Sento-me a um banco e tomo por passatempo observar a variedade dos calçados dos passantes. Se bem me lembro, foram apenas duas as vezes que vi pessoas diferentes com o mesmo modelo de sapatos. Curioso.

Fora esse meu estudo de caso acerca daquilo que envolve nossas solas, aprecio o desafio das palavras cruzadas. Diretas, Coquetel, Difícil. Se não ficasse tão preocupada em chegar na hora das sessões, poderia empregar todo o tempo que me resta nesse mundo das cruzadinhas. Instigante.

Me acomodo na poltrona. Apagam as luzes. Deixam acesas apenas aquelas luzinhas de merda, aquelas que são pregadas ao chão. Como se as pobres filhas da mãe pudessem impedir meus pés de tropeçarem. Inútil.

Propaganda. Trailers. Filme. Eu eliminaria, de bom grado, as duas primeiras etapas. Publicitários fazem seu trabalho porcamente e eu não gosto de receber spoilers de filmes. Bobajada.

Não preciso olhar nem apurar meus ouvidos para saber que há pelo menos uma quinzena de casais dando uns amassos ao meu redor. Ingresso promocional tem dessas coisas. Seria bom se houvessem promoções realmente dignas nos motéis, ao contrário daquela conversa fiada de "jantar grátis". Enrolação.

O filme começa e prego meus olhos na tela. É chato descolá-los por segundos quando alguém passa para ir ao banheiro. Gostaria que pessoas incovenientes fossem obrigadas a usar sondas para dejetos. Sonho.

É hora do cast e quase todos se levantam ao desabrochar da primeira sombra de nomes próprios na tela. A relação homem-trabalho é mesmo deturpada. Difícil alguém capaz de prestigiar o trabalho do outro, ainda que seja malfeito. Ignorância.

Paro num café perto de casa e tomo um chá de hortelã. Reviso o jornal e faço minha escolha cinematográfica para o dia seguinte. Paz.

sábado, 27 de março de 2010

Saudades do céu azul...

Linhas luminosas riscavam o céu sem parar. Zeus, por certo, estava no ápice de sua fúria. Será que ele não entendia que Clarice era, além de mim, quem merecia aquela tempestade? Por que aborrecer os outros habitantes da cidade?

Tudo começou com o tal "amor à primeira vista". Para os familiarizados com o assunto, trata-se da velha e boa paixão. Irresistível, avassaladora, visceral. Eu, um reles mortal, nem um pouco habituado a explosões sentimentais, fui pego de surpresa. Um gato interceptado por mãos ágeis no meio do pulo.

A ideia inicial era ter um casinho à toa. Eu não tinha intenção alguma de desmembrar meu aconchegante e confortável lar. Tinha uma esposa prendada, silenciosa e pudica... um doce de pessoa. Mas era um doce embrulhado e inacessível, como os ovos de Páscoa durante a quaresma.

Havia algum tempo que nosso casamento andava "morno". Algum tempo, leia-se, desde que começou. Mas como namorávamos desde o ginásio, as famílias se adoravam e, à época, não tínhamos ninguém melhor em vista, casamos. "Juntamos os trapinhos", como dizem. E nunca pudemos oferecer um ao outro nada além de trapos.

Não tivemos a audácia de ter filhos. Isso só tornaria nossa convivência ainda mais medíocre, com todos aqueles problemas de boletins e os vômitos e constipações tão típicos das crianças. Por tudo isso, minha culpa em dormir, ao menos três vezes por semana, com Clarice era ínfima. Ela era fantástica, afinal! E ainda tinha o frescor dos vinte e poucos anos... uma recém-chegada à vida adulta.

Mal nos conhecemos e já era como se Clarice fosse necessária ao funcionamento da parte inútil da minha vida, como se o fato d'ela não estar inserida em algo tirasse o propósito da tal coisa. E sendo impossível injetá-la em tudo ao meu redor, eu tomava overdoses dela, para ser capaz de aguentar todo o resto.

No começo, eu podia sentir a reciprocidade. Ela também adorava nossos encontros. Era carinhosa, atenciosa e muito, muito sexy. Quando me olhava por cima do ombro, mordendo o lábio, eu estava, instantaneamente, pronto para o ataque! Virávamos as noites realizando nossas fantasias e, na maior parte das vezes, eu acariciava seus cabelos negros até que adormecesse.

Que saudade! Saudade de quando ela me amava, me queria, me respeitava. Saudade de quando fizemos nossas juras de amor e de quando prometemos que nada mudaria, nunca. Saudade de quando eu voltava para casa pela manhã, dava um beijo em minha mulher e recebia uma mensagem de Clarice no celular, reafirmando o quanto adorara a noite. Saudade de quando ainda havia uma mulher a me esperar em casa e outra a me mandar mensagens. Saudade dos dias que Clarice manteve sua promessa de não contar nada a ninguém, muito menos à sua chefe, minha mulher.
Saudades...