quarta-feira, 24 de junho de 2009

Água de coco

Alice não tinha muito mais o que dizer. Havia esgotado seu contingente anual de esperanças em um só dia. Que se há de fazer?
Ele não compreende. Ou melhor, não quer compreender. Decerto é mais cômodo assim. "Vai saber o que se passa na cabeça de um artista!", pensava ele.
Ela esperava que por ser ele alguém de mente aberta, estaria ela, automaticamente, livre de maiores embargos. Mas não é que ele resolveu empacar como um burro velho?
Verdade que não fazia sentido algum continuar com a latumia. Já passava da meia-noite, e Alice estava cansada de tantas delongas. Fora um dia comprido, daqueles dos quais não há como escapar antes que ele termine.
Ele queria casar, constituir família, ter uma casa. Ela também. Só que a casa que ela queria era uma do tipo andante, viajante. Residência: mundo. Enraizar-se num lugar não era para ela. Alma livre, leve, solta. Uma borboleta que sabe que sua existência é efêmera, e que, portanto, deve ser saboreada como o mais delicioso dos desjejuns.
Alice não gostaria que chegasse o adeus. Ainda mais por um motivo banal. Que há de mal em não criar raízes? Onde reside a ofensa disso? É tão estapafúrdia assim, a ideia do não-sedentarismo?
Ela não via o porquê de tanta tempestade. Ainda por cima, em copo d'água. Sim, porque o mundo dele parecia restringir-se ao copo, enquanto o dela era uma jarra inteira. Unidos apenas pelo conteúdo, pela água, pelo amor.

(É o que preenche o recipiente suficiente para matar a sede de vida de Alice? É o amor suficiente para preencher todo o seu ser, invadindo espaços outrora habitados por outros anseios?)

Alice o amou, sim, o amou até a última gota de amor. A ele também foi permitido sentir-se assim. Por isso, libertou-a. E ela fez o que quis com o presente que Maneco lhe deu: construiu um futuro.
Um futuro no qual havia um trailer, um copo, uma jarra e duas alianças de quenga-de-coco.

3 comentários:

Unknown disse...

Uma borboleta que sabe que sua existência é efêmera, e que, portanto, deve ser saboreada como o mais delicioso dos desjejuns.

Foi a coisa mais bonita que li hoje (: E li muito.

Beatriz disse...

diande de recentes experiências próprias, digo que não, o amor não é água suficiente para matar a sede de vida. um dia ele é assolado por uma irreversível seca, e o que resta de nós? texto inspirador! (:

Alexandre Cunha disse...

Tô com Duda. Lindíssimo texto, Lorena!

ps: E pra Beatriz: "Se a seca intervir, espera. Se é amor, realmente amor, a chuva traz de volta", já diria um grande pensador contemporâneo, husahusuha.

:*